Tomás Halik é um padre católico checo, que veio da
“Igreja do Silêncio” da antiga Checoslováquia comunista. Ordenado
sacerdote clandestinamente na Alemanha de Leste em 1978, 10 anos depois
da Primavera de Praga, é actualmente professor de sociologia numa
universidade de Praga. Em 2010 ganhou, com PACIÊNCIA COM DEUS, o prémio
de melhor livro teológico do ano e em 2014 o Prémio TEMPLETON.
Exclusivo 7M: um ensaio de Tomáš Halík
O Cristianismo na guerra de armas e de ideias
Tomáš Halík | 18 Mai 2022
Este ano, as palavras proféticas do Papa
Francisco tornaram-se realidade: “Vivemos não uma época de mudanças, mas uma
mudança de época.” Há muito que o Papa Francisco fala do nosso tempo como sendo
uma “Terceira Guerra Mundial fragmentada”. Neste momento, até o porta-voz de
Putin diz que a III Guerra Mundial começou, e talvez seja a sua única afirmação
verdadeira.
Ganha forma um novo mapa geopolítico do
mundo, uma nova ordem mundial, surge um novo clima moral nas relações
internacionais, políticas, económicas e culturais. Deparamos com a necessidade
de adotar um novo e mais simples estilo de vida. Começa um novo capítulo da
História.
Desde o início deste milénio, a ordem
democrática ocidental tem sido submetida a uma série de testes, cada vez mais
difíceis, de resiliência, durabilidade e credibilidade: o ataque terrorista em
Manhattan, a crise financeira, o Brexit, a administração populista de Donald
Trump, a pandemia global do coronavírus, agora a agressão russa, a destruição
cínica do sistema de direito internacional construído após a Segunda Guerra
Mundial.
A cegueira e a ingenuidade dos políticos
europeus, guiados apenas por interesses económicos, contribuíram para que a
Rússia se tornasse um Estado terrorista que se excluiu do mundo civilizado com
a ocupação da Crimeia e o atual genocídio na Ucrânia, e que agora chantageia e
ameaça esta última. Ainda não sabemos como o isolamento internacional, a
pobreza e a humilhação vão afetar a sociedade russa, privada de liberdade de
informação, tendo sofrido uma lavagem ao cérebro através da propaganda e sendo
alimentada pela nostalgia do império soviético. Não sabemos se esta situação
vai levar a uma fraca oposição democrática ou se, pelo contrário, vai despertar
um fanático movimento nacionalista-fascista, como aconteceu na Alemanha após a
Primeira Guerra Mundial. A única coisa certa é que, mesmo depois do fim da
guerra na Ucrânia, o mundo não voltará à forma que tinha no início deste ano.
A frente decisiva nesta guerra é a opinião
pública na Rússia, que tem sido privada de liberdade de informação e sujeita a
uma intensa lavagem cerebral pela propaganda de mentiras. O aliado mais
importante do regime de Putin e da sua ideologia imperialista-nacionalista é o
analfabetismo político de grande parte da população russa, a falta de uma
experiência positiva democrática e, acima de tudo, a ausência de uma sociedade
civil.
Em muitos países pós-comunistas, foram
alguns membros das elites dos regimes comunistas politicamente derrotados –
especialmente a sua componente mais capaz, a polícia política –, os mais
rápidos a embarcar no elevador da globalização e a chegar ao topo do poder e da
riqueza; eram praticamente os únicos que estavam preparados para as mudanças
político-económicas tendo capital de dinheiro, de contactos e de informação.
Vladimir Putin é um excelente exemplo destas elites.
O primeiro sinal do despertar da sociedade
civil na Europa oriental foram as “revoluções coloridas”; a principal razão de
Putin levar a cabo a sua agressão foi o medo de que a faísca do renascimento da
sociedade civil se estendesse à Rússia. O fim da era Putin na Rússia não será
um eventual golpe palaciano por parte de oligarcas ou generais, mas sim o
despertar da sociedade civil, como aconteceu agora na Ucrânia.
Se o Ocidente não está disposto ou é
incapaz de ajudar a Ucrânia de modo a travar a agressão russa e a defender a
sua independência, se o Ocidente sacrificar a Ucrânia com base na falsa ilusão
de que isso salvará a paz mundial – como aconteceu no caso da Checoslováquia no
limiar da Segunda Guerra Mundial –, isso será um incentivo não só para uma
maior expansão da Rússia, mas para todos os ditadores e agressores em todo o
mundo.
Putin está interessado na rendição da
Ucrânia porque sabe que isso mostraria ao mundo a fraqueza do Ocidente e seria
a rendição de todo o sistema de democracia liberal. Este sistema mantém-se e
sustenta-se no capital de confiança que as pessoas têm na eficácia das
instituições democráticas; uma nova violação desta confiança, já abalada, pode
ter consequências fatais.
Vladimir Putin conseguiu – contra a sua
vontade – criar na Ucrânia uma nação política, determinada e unida, para a qual
pertencer à Europa não é apenas uma frase retórica, mas um valor pelo qual
milhares de pessoas dão as suas vidas. A Ucrânia está a assinar com o seu
sangue o pedido de adesão à União Europeia. A Ucrânia é hoje mais “europeia” do
que muitos países do coração da Europa.
Mobilizar
forças morais e espirituais
A Ucrânia dá hoje ao mundo uma lição
valiosa: os planos de uma superpotência nuclear podem falhar se forem
contrariados pela coragem e pela força moral, mobilizadas pelos seus líderes.
Os planos de uma superpotência nuclear podem falhar se tiverem a oposição da
coragem e da força moral, mobilizadas por líderes com credibilidade pessoal,
vontade de fazer um autossacrifício extremo e possuindo a arte de uma
comunicação persuasiva.
Haverá hoje no Ocidente algum líder
político que mobilize forças morais como Zelensky?
Putin conseguiu, em certa medida, unir o
Ocidente contra si. No entanto, subsiste uma tarefa difícil para o Ocidente:
transformar a unidade contra um inimigo comum numa unidade positiva mais
profunda. Continuar em espírito democrático no processo de integração europeia
não só é desejável como necessário e significa formar uma demos europeia, uma comunidade de valores para a qual
estamos dispostos a sacrificar muito – e é sobretudo uma tarefa cultural,
moral, espiritual.
Após o ataque a Manhattan, a falecida
Madelaine Albright sublinhou que a “guerra ao terror” não pode ser apenas uma
guerra de armas, mas deve ser também uma batalha de ideias.
A linguagem secular tem-se mostrado
incapaz de dar voz às emoções fortes quando estas saem a céu aberto como
acontece em situações de crise. Vemos na linguagem dos políticos – mesmo
daqueles que estão muito distantes da fé pessoal e da ética religiosa –
aparecerem espontaneamente termos religiosos, evocando imagens sugestivas do
“inconsciente coletivo”. A sociedade secular tem subestimado a força da
linguagem religiosa, dos símbolos e dos rituais. Estas forças podem ser usadas
de forma construtiva ou destrutiva. Os extremistas islâmicos conseguiram
aproveitar o potencial da energia religiosa para os seus próprios propósitos.
Que potencial espiritual tem a sociedade ocidental secular? Que papel pode
desempenhar o cristianismo no Ocidente?
As igrejas cristãs ainda não recuperaram
suficientemente das revelações dos abusos sexuais, da onda de secularização (ou
mais precisamente dos sem-igreja) das sociedades
ocidentais.
Na linha da frente da Grande Guerra
1914-1918, a experiência de teólogos como Teilhard de Chardin e Paul Tillich
fez surgir uma nova teologia, uma nova conceção de Deus e da relação entre Deus
e o mundo.
Será que desta guerra veremos emergir uma
nova energia espiritual e novas visões inspiradoras para o futuro que marcarão
o nosso mundo com as suas consequências?
A
relação entre religião e política está a mudar
Precisamos de voltar a fazer a pergunta
sobre qual a relação entre política e religião.
Alguns ditadores e líderes de regimes
autoritários instrumentalizam a religião, de forma deliberada. Quando Estaline
percebeu que os povos do Império Soviético (especialmente a Ucrânia) não
estavam dispostos a lutar pelo comunismo, quando da invasão das tropas de
Hitler, redefiniu o conflito como sendo a “Grande Guerra Patriótica”, e vimos
os padres ortodoxos, com ícones nas mãos, marchar à frente das tropas do
Exército Vermelho. Putin, grande admirador de Estaline, também reconheceu que a
“Grande Rússia” que procura precisa de um impulso espiritual e tenta
instrumentalizar a Igreja Ortodoxa Russa. Sabemos que muitos dos seus líderes
são seus ex-colegas do KGB.
A indústria da propaganda russa visa
especificamente os cristãos conservadores e procura retratar Putin como um novo
imperador Constantino que salvará o cristianismo da influência corrosiva do
“protestantismo e do liberalismo ocidentais”.
Viktor Orbán e alguns líderes da atual
Polónia também se vêem como “salvadores da cultura cristã” nas críticas que
fazem à União Europeia. O primeiro-ministro húngaro proclama (e pratica) um
modelo de “democracia iliberal” próximo da “democracia gerida” de Putin; na
realidade, é uma forma dissimulada de dizer um Estado autoritário. Na Polónia,
a aliança dos políticos populistas-nacionalistas com certos círculos de
liderança da Igreja, juntamente com a revelação de um nível chocante de abuso
sexual, psicológico e espiritual por parte do clero, levou a uma perda
dramática de confiança na Igreja, especialmente entre as gerações mais novas.
Esta aliança entre o cristianismo conservador e o nacionalismo desacredita o
cristianismo e prejudica mais a Igreja do que meio século de perseguição
comunista; a Polónia está a atravessar o processo mais rápido de secularização
da Europa.
Existe alguma forma de cristianismo no
mundo de hoje que possa ser fonte de inspiração moral para uma cultura de
liberdade e democracia? Há muitos anos que me faço esta pergunta. Temos de
procurar uma forma que não seja uma imitação nostálgica do passado e que
respeite o facto de o nosso mundo já não ser religioso e culturalmente
monocromático mas radicalmente pluralista.
O conceito de religião (religio) tem sido visto tradicionalmente como derivando
do verbo latino religare (reunir). A religião foi
entendida como uma força integradora na sociedade. Este papel foi largamente
cumprido pelo cristianismo pré-moderno dentro das Christianitas medievais.
Mas esse capítulo da história do Cristianismo acabou. Seguiu-se a época da
modernidade que levou o cristianismo a ser uma de muitas “visões do mundo”. Era
uma religião dividida em diferentes denominações representadas por diferentes
igrejas. Hoje, esta forma de cristianismo atravessa uma grave crise.
Até agora, a relação entre religião e
política tem sido vista principalmente como sendo entre Igreja e o Estado. No
entanto, no decurso da globalização, as igrejas perderam o monopólio da
religião e a nação afirma o seu monopólio na política. O principal concorrente
da religião, na Igreja de hoje, não é o ateísmo ou o humanismo secular mas a
espiritualidade sem-igreja, por um lado, e a
religião como ideologia política, por outro. No decorrer da secularização, a
religião não desapareceu, mas sofreu uma profunda transformação. O seu papel na
sociedade e na vida das pessoas está a mudar.
O papel da “religio” como força
integradora da sociedade tem sido assumido por outros fenómenos sociais no
processo de globalização, especialmente pelo mercado global de bens e de
informação (incluindo os meios de comunicação de massa). Hoje, o processo de globalização
e a ordem política e económica sofrem profundas convulsões e mudanças. Não há
uma força unificadora global. Se a atual unidade do Ocidente se baseasse apenas
na defesa contra a Rússia, não duraria.
Após a queda do comunismo e do mundo
bipolar, Francis Fukuyama expressou a esperança de que o “fim da história”
viesse sob a forma de uma vitória global da democracia e do capitalismo de
estilo ocidental. O radicalismo islâmico e, agora, a Rússia de Putin,
responderam a esta visão com pânico, ódio e violência.
Para que o processo de unificação mundial
continue, não podemos confiar apenas no lado económico da globalização. A cura
do mundo pressupõe uma força espiritual inspiradora.
Para
curar as feridas do mundo
O Papa Francisco apresenta uma visão da
Igreja como sendo um “hospital de campanha”; uma Igreja que não se encontra num
“esplêndido isolamento” do mundo contemporâneo, nem trava “guerras culturais”
no seu seio. Se a Igreja quer ser um “hospital de campanha”, então o seu
ministério terapêutico pressupõe a capacidade de diagnosticar, com competência,
o estado do mundo.
Suspeito que a religião do futuro estará
mais de acordo com o significado do verbo re-legere, ler de
novo. Oferecerá uma “re-leitura”, uma nova hermenêutica, uma capacidade de
“leitura espiritual” e uma interpretação mais profunda das suas próprias fontes
(Bíblia e tradição no caso do cristianismo) e dos “sinais dos tempos”:
acontecimentos na sociedade e na cultura. A visão dos meios de comunicação
social, dos políticos e dos economistas tem de ser complementada por uma
abordagem contemplativa do nosso mundo. Encontro uma inspiração valiosa para o
dia de hoje, e para o de amanhã, nos ensinamentos sociais do Papa Francisco.
Estou convencido de que a encíclica Fratelli tutti (incluindo
os capítulos sobre a nova cultura política) pode ter, para o século XXI, uma
relevância semelhante à que teve a Declaração Universal dos Direitos Humanos
para o século XX.
O teólogo protestante checo Jan Amos
Komenský escreveu a Consultatio Catholica De Rerum Humanarum
Emendatione (Consulta Católica sobre Reparação dos Assuntos
Humanos) como preparação para o Concílio Ecuménico durante as guerras
religiosas do século XVII. Hoje, vejo de forma semelhante o apelo do Papa
Francisco a transformar a Igreja de uma instituição clerical rígida numa
dinâmica viagem comunitária. Tal como a democratização da Igreja durante a
Reforma contribuiu para a democratização da sociedade, assim o princípio da
sinodalidade (syn-hodos, caminho comum) pode ser uma inspiração, não
só para a Igreja Católica e para a sua abertura à cooperação ecuménica,
inter-religiosa e intercultural, mas também para uma cultura política de
convivência num mundo pluralista. Neste momento, o mundo está em guerra,
mas temos de pensar no mundo do pós-guerra. Não devemos repetir velhos erros e
subestimar a energia espiritual das religiões mundiais.
Ao longo da história, a Europa tem sido a
mãe de revoluções e reformas, o foco de guerras mundiais e do processo de globalização,
tendo enviado impulsos de desenvolvimento cultural, científico, económico e
tecnológico para todo o mundo, e deixado traços significativos de luz e
escuridão na história mundial. Hoje, o sonho de uma Europa unida a “respirar
com ambos os pulmões” está ameaçado pelos tumores perigosos do nacionalismo, do
populismo e do fundamentalismo que existem em ambos os pulmões. O potencial
terapêutico, não destrutivo, da religião, deve ser desenvolvido. Um tempo de
crise é também, sempre, um momento de novos desafios e oportunidades.
Tomáš Halík
(Home - Sete Margens)